sexta-feira, setembro 30, 2005

Esperando, esperando...


Para a minha surpresa ele ainda estava lá me esperando, como sempre; sentado no banco de sempre, o mesmo banco que eu me sentava junto a ele para ser socorrida dos meus próprios perigos, o mesmo banco em que muitas vezes me debrucei e chorei e sonhei e menti e fingi descaradamente para ele. Senti um misto de pena e raiva, vaidade e tristeza, dele e de mim mesma.
Não acreditei no inacreditável e o inacreditável era isso: ele estava lá, do mesmo modo em que eu o abandonei. Acreditando, como sempre, nas minhas mesmas mentiras forçadas, esperando verdades veladas que se perderam, idéias descabidas com tudo aquilo que um dia eu inventei apenas para agarrá-lo, ou esperando somente que eu tivesse um pouco de bom senso.
Mas isso eu não tenho e ele permaneceu, no mesmo lugar, com a mesma cara, com o mesmo jeito, com o mesmo carinho, com o mesmo olhar. Esperando a minha volta, agindo como se nada tivesse acontecido, como se o tempo não tivesse passado para nós dois. Quando olhei aquilo mal acreditei. "Por que você ainda está aí?" eu me perguntava.
Meio possessivo, meio carente, meio precisando de mim, me fazendo sentir culpada, a pior das criaturas. Num momento de rompante eu quis arrancá-lo dali, não havia mais necessidade daquilo, tornou-se um incômodo, um fardo pesado demais para ser carregado, mas não consegui, porque ele simplesmente não quer ir embora.
Eu tenho que admitir que nem eu mesma consigo, ou quero, expulsá-lo por completo, existe dentro de mim uma necessidade urgente de mantê-lo sempre ali, ao meu alcance, por mais egoísta que possa parecer. Talvez seja a vontade gritante de que um dia ele possa vir a ser o que sempre esperei, sonhei; talvez seja a necessidade de saber que existe alguém que espera por mim, independente das minhas ações. Mas enquanto isso não chega ele se contenta com pequenos mimos, carinhos soltos, como quem não quer nada, olhares curtos e poucos sinuosos, enfim, com o mínimo que eu posso oferecer.
Admiro sua perseverança, mesmo depois de tanto tempo continua firme, em pé, inquebrável, duro como um rocha. Uma pedra grande que ninguém consegue derrubar ribanceira abaixo, nem o mundo, nem eu e minha indiferença absurda.

sábado, setembro 24, 2005

Certezas


A partir do momento que entrasse naquele ônibus sabia que com o tempo eu seria apenas uma lembrança, uma foto amarelada num álbum de fotografia, aquela a quem se escreve uma vez a cada cinco anos para fazer um resumo de tudo o que aconteceu. Aquela que fará parte da frase: "lembra de fulana?". Aquela exilada dos acontecimentos importantes, das vitórias e derrotas, das conquistas e fracassos, das mudanças trazidas com o tempo. Enfim, aquela que, graças ao relógio e a distância, seriam apagadas da memória, mesmo que lutássemos contra isso eu tinha certeza de que quando aquele ônibus saísse daquela rodoviária fria eu não seria mais o presente eu agora pertenceria a categoria do passado, das coisas esquecidas ou lembradas muito vagamente.
Já me daria por satisfeita em estar no álbum de fotografia, mas sabia que mesmo ele seria jogado num canto qualquer de alguma grande bagunça amontoada num quarto exclusivamente destinado a guardar lembranças do passado. Aquele quarto onde raramente se visita, que todos tem preguiça de arrumar, aquele lugar onde ninguém gostaria de estar.
Das muitas certezas que pesam na cabeça de uma pessoa, nenhuma é tão forte e mais triste do que saber que a porta fechou e você ficou do lado de fora, na chuva, no vento frio, sozinha. A certeza de que não há táxi nenhum que possa te levar na mesma direção daquilo que você ama, as ruas estão desertas e as casas foram abandonadas. A certeza de que agora se anda na contramão, nos extremos. Não existirão mais assuntos em comum, memórias de finais de domingo à tarde, risadas na volta para casa, brigas, desavenças, reconciliações. Não existirão mais os sonhos, os desejos incomuns, as fantasias loucas e infantis, os jantares, as conversas jogadas fora. Não existirão mais coisas para serem compartilhadas, pesadelos do cotidiano para serem consolados, abraços, beijos, gafes. Não existirão mais os sorrisos transmitidos mutuamente, as certezas de um "até amanhã" dito na hora da despedida. Não existirá mais o ombro amigo, a palavra acolhedora, as mentirinhas bem pensadas para se manter a relação estável. Não haverão mais os telefonemas, as cumplicidades, enfim tudo aquilo que permeiam os relacionamentos
Uns sonhos vêem, outros tantos se vão, e nós fomos, mas já passou, acabou. Acabou num click, num piscar de olhos, numa arrancada de motor, numa Via Dutra. Acabou dentro de um ônibus, levando para bem longe aquilo que lhe é caro, suas preciosas riquezas tão bem cultivadas.

segunda-feira, setembro 19, 2005

O mineirinho


Prometo nunca mais duvidar de você, mesmo quando se tratar daquelas mentiras que basta um olhar superficial para dessecá-las. Mas eu esqueci que você não mente, você conta a história de outra maneira.
Quando você disse que voltaria eu desconfiei, fiz aquele ar de pouco crédito, mas você ratificou e ratificou tantas vezes que, agora, vendo você parado na minha frente me faz pensar em querer largar tudo isso aqui, as poucas coisas que eu posso realmente dizer que são minhas, coisinhas, pequenos objetos do meu mundo engavetado e me lançar na vida com você.
Meu garoto mineiro de sotaque manso a atitudes impensadas que me arrastou pelos corredores e me convidou para ser louca ao lado dele, que me convidou para tomar assento nos seus sonhos curtos, doces e recheados de prazeres anônimos, nas suas palavras proferidas sem pensar nas conseqüências, soltas no impulso do momento, e que me chama para torcer o nariz para as responsabilidades do dia-a-dia.
Você que cortou minha garganta quando partiu, mas que jurou voltar nem, que fosse para dizer adeus novamente, e, eu cética não acreditei, só que depois de levar uma rasteira do bom senso e das previsões, prometo nunca mais duvidar de uma única frase sua, nem temer os abismos pelos quais você me convida a pular.
Você com seus cabelos de fios dourados e sempre desgrenhados, sua barba eternamente por fazer, seu jeito boêmio de moleque malandro que leva todo mundo no papo, essa sua conversa mole tão gostosa de ouvir, esse seu ar de dono da rua, dono do mundo e para quem o mundo ainda não aprendeu a botar cabresto. Essa mania de invadir as pessoas e fazer do coração delas sua morada oficial, porém temporária, mania de levar a vida na farra. E ai daquele que tentar segurá-lo pelas costas!
Você que me ensina a bambolear a vida, a não me preocupar com as tempestades e cerrar as retinas para os problemas menores. Você, meu menino mineiro malandro que finge ser meu e que sabe que eu finjo ser sua. Você que me faz tão bem e me ensina a levar a vida assim, nas coxas, na graça, no talo, sem complicações. Você meu menino vadio que não quer crescer. E para ser sincera quem disse que eu também quero?

quarta-feira, setembro 14, 2005

Querido Roger


Há muito ele merecia um papel de destaque, ou pelo menos algumas generosas linhas de agradecimento nesse blog. Não, a pessoa a quem vou me referir não é mais um daqueles casos passionais que eu tanto gosto de cultivar e que fazem tão bem a minha pele e cabelo, até porque ele já tem "dona" , e mesmo sendo eu uma menina má, como alguns dias me foi relatado tal opinião, não ousaria destruir sua choupana. Choupana sim, pois como ele mesmo sempre me diz, ninguém é forte e inquebrável o suficiente para construir castelos.
Trata-se, aqui, da pessoa que oxigenou a minha percepção de mundo e das coisas que estão ao meu redor. Aquele que me arrancou do topo da minha linda escadaria de cristal, que eu julgava tão preciosa, e me trasladou ao mundo "real". O mundo onde se vive e come o indigesto, o cru, frio, o que rasga a garganta de tão amargo que é. O mundo que adoece, que traumatiza, que cria mágoa, desavença. Um mundo cruel, sem Barbies ou Hello Kittys, mas que pode ser encantador se conseguirmos transgredir as convenções e lutar pelo que amamos e acreditamos, mesmo quando todos tentam nos convencer do contrário.
Mostrou-me a importância dos gestos simples, dos pequenos feitos. Ele que me arrastou pelos cabelos e me obrigou a atravessar a ponte carcomida pelo tempo, construída no topo do precipício só para saber que existe vida no outro extremo da minha visão, para me mostrar que só os errantes, aqueles que não tem medo de perder suas conquistas, suas vidas certinhas, marcadas pelo relógio é que conseguem descobrir esse lugar e sua beleza.
Ele que muitas vezes bancou o meu Hércules e me livrou das correntes do malvado Zeus. Eu que mesmo não tendo o fígado devorado todos os dias, era capaz de sentir angústia semelhante de quem acha que a vida está escorrendo por entre os dedos feito água, ou que tenta colocá-la num pote para usá-la mais tarde, no momento oportuno.
Aprendi com ele que a gente guarda objetos, não a vida, não o mundo que espera por nós. Que não adianta trocar de roupa, mudar o cabelo, encenar outro personagem se a essência permanece a mesma, intocável, entranhada na pele. Se apenas tentamos fazer um número diferente diante da vida, acabamos nos tornando caricatos, repetindo, com outra roupagem, aquilo que todos fazem.
Aprendi com ele que a vida não é uma capa que a gente vai remendando, costurando quando ela está rasgada. A vida é única. Não é um cara, um emprego bacana, status que nos fará mais forte, mais feliz. Também não é fugindo de compromissos sérios, de certezas, de previsões, de regularidades que enganaremos a infelicidade ou que viveremos de maneira plena. É dando a cara pra bater. É somente mostrando coragem diante do mundo que sobrevivemos a ele e a tudo o que ele impõe.
A vida está lá fora, berrando para ser ouvida, não adianta fugir, ligar a televisão ou colocar o rádio no último volume para tentar disfarçar, ela só desisti quando vamos lá fora e a encaramos de frente perguntando o que é que ela deseja. Talvez alguém não lhe dê ouvidos, talvez ache tudo uma grande baboseira. E talvez se deixarmos ela gritar demais ela fique rouca e vá embora e quando resolvermos procurá-la ela talvez não esteja mais lá.

domingo, setembro 11, 2005

My Lord

A quantas anda o meu pensamento nessa hora, rindo feito uma criança tola, me deixando levar por idéias descabidas, pisando, novamente, o fértil terreno da imaginação, que me arranca para fora dos sentidos do mundo e me balança feito as folhas das árvores.
Sinto o pouco do meu bom senso sendo sacudido feito um galho frágil, me deixando levar pelo riso desenfreado e bobo, como se estivesse ouvindo a revelação da Senhora Sorte ou da Poética Cômica de Aristóteles.
Esse riso misturado com o frio na barriga, por sua vez misturado com a sensação de boca seca que me remete à estranhas emoções. Emoção de quem está sendo engolida de um vez só, de quem não está mais no próprio corpo. Esse riso nervoso de quem não sabe o que fazer, como agir; se calar ou falar.
O que seria melhor? Não sei.
Só sei que a imaginação já corroeu tudo aqui dentro e que não dá mais para voltar à normalidade esperada de uma mulher com seus vinte e poucos anos de vida, que muitas vezes se surpreende com a própria capacidade de ainda ser uma menina que treme nas bases quando não sabe o que fazer diante de situações inesperadas.
Como se portar diante dele, do seu olhar, do brilho intenso daqueles olhos que desarma o mais imponente dos generais, da voz vibrante, profunda, forte. Daquele ar de quem sabe exatamente o que vou dizer. Daquele jeito meio sádico de quem sabe que você está uma pilha e não faz nada apara amenizar o seu mal-estar.
Estou perdida nesse labirinto de rompantes que criei. Não dá mais para conter o gargalhada presa, entalada na garganta. A vontade de grita para quem quiser, ou não, ouvir que eu não consigo mais conter o desejo de outra vez rolar escada abaixo e me quebrar por inteiro; de chegar ao último degrau completamente desfeita, exausta, maltrapilha.
Berrar no alto-falante que ninguém consegue conter a euforia de estar a alguns dedos do seu Lord. Mesmo que ele não sinta o mesmo, mesmo que não passe de mais uma doce e triste ilusão e que ao acordar o mundo real te arranque desse sonho, aonde tudo é perfeito, e te leve, como se estivesse sendo aspirada pelo olho do furacão, ao planeta Terra e suas plantinhas verdes.
Então eu vou! Mesmo que não ultrapasse as fronteiras do tempo e do espaço. Mesmo que se resuma a um simples abrir e fechar de olhos. Mesmo que nada precise ser dito, esclarecido, discutido. Mesmo que seja leve ou despreocupado feito sono de criança. Mesmo que seja apenas para dizer adeus, para deixar escapulir uma lágrima, para achar que o tempo não anda, para acreditar que o universo conspira contra nós dois. Mesmo que seja para enlouquecer, para emagrecer, para tirar o sono, nos encher de culpa. Mesmo que seja apenas para assistir TV, ouvir música, ver o dia passar e a noite chegar. Mesmo que seja para cavar o próprio abismo e depois ver tudo se resumir a pó. Mesmo que seja para de novo acreditar que agora vai dar certo, que finalmente chegou a hora. E mesmo que não seja para nada disso, aqui estou, na sua frente, sem saber o que dizer, com a imaginação me carregando à força para um caminho sem volta. Aqui estou, com todos os meus erros, minhas boas e más intenções, com meu "português pequeno burguês", estou aqui e pelo menos por hoje é aqui que eu pretendo permanecer.

quarta-feira, setembro 07, 2005

A mulher da minha vida

Quando a vi pela primeira vez achei-a linda, linda. Ela, porém, estando na companhia de outra, não demonstrou muito interesse por mim, na realidade acredito que nem prestou atenção na minha presença, mesmo assim não conseguia não focar meus olhos nela, observei cada detalhe: as mãos, os pés, o nariz, a boca...
O tempo foi passando e fomos nos tornando bem mais íntimas, nosso contato tornou-se quase diário. Percebi que ela também já gostava da minha presença, passando a me oferecer seus mais belos sorrisos, alegrando-se quando eu lançava-lhe um olhar. A essa altura nossas conversas estavam cada vez mais freqüentes. Ela tinha um jeito todo especial de conversar comigo, fitava-me diretamente nos olhos e, vez por outra, olhava ao redor, curiosa que era de saber o que estava acontecendo.
Observei o quanto ela gostava de uma bagunça, quanto maior a desordem melhor. Ela era um ser do mundo e as coisas desse mundo a atraíam de forma violenta, mas ela propriamente dita não era desordeira, pelo contrário, emana uma tranqüilidade absurda para alguém da sua idade. Não reclama de nada, nunca está de mau-humor e onde chega consegue roubar a atenção de todos esbanjando simpatia aos quatro ventos.
É doce, meiga, encantadora, mas é decidida, sabe bem o que quer e destila seus veementes protestos quando algo lhe desagrada. Mas nada é capaz de tirar-lhe os ânimos.
Entretanto, apesar de todo o meu afeto demonstrado não consegui fazer com que ela tivesse olhos somente para mim. Ela tem outra a quem ela ama, incondicionalmente. Sim, eu tenho uma rival, só que não desisto de pegar uma carona no seu amor.
Um dia tomei coragem e carreguei-a para minha casa e ela foi, rindo, é claro, como era de costume quando percebia que estava fazendo alguma trela. Ofereci-lhe o sofá para que ficasse mais à vontade e ela tomou conta, não só dele, como da casa inteira.
Passamos, só eu e ela, uma tarde deliciosa, rimos, conversamos, nos apoiamos e então eu percebi que ela já é uma parte da minha vida. Uma parte arrancada de uma vez só, com um único corte. Uma parte que eu mesma fiz questão de entregar pessoalmente.
Hoje, no auge dos seus quase oito meses de vida, a minha lindinha, como carinhosamente a chamo, se esparramou no meu coração e fez de brinquedo o meu bom senso. A ela nada consigo negar, pois basta que ela me lance um daqueles seus olhares suplicantes para derreter a mais grossa camada polar do meu coração.
Ela é a rainha de muitos reinos, mesmo que sejam fictícios. Ninguém ousa perturbar-lhe o sono, negar uma guloseima, um carinho. Todos disputam seus abraços, sua pele branquinha, suas pequeninas mãos de dedinhos suaves que me fazem brincar e dizer-lhe que ela será uma linda artista plástica, a melhor e mais bela de todas. A minha artista; com suas pernas quem mal conseguem manter-se em pé, seus olhos profundos, seus sorrisos, onde dois discretos dentinhos já dão sinais de aparecimento.
Ela que chegou miúda e frágil como os bibelôs e em pouco tempo tornou-se a dona do território, fazendo de todos seus servos voluntários. Tornou-se a verdadeira dona da casa, a dona de tudo, inclusive a minha dona, a minha Maria Luíza.

sexta-feira, setembro 02, 2005

O Soteropolitano

- Você gosta de quadrinhos no estilo Hai-Kai?
- Não conheço nenhum
- Se você quiser depois eu te mostro alguns
- Eu quero

Então você pediu que eu voltasse e eu voltei, voltei durante seis dias, ininterruptamente. Voltei para aquela história que não duraria mais que esses seis rápidos e deliciosos dias, mas que mesmo assim me sugava para junto dela como um aspirador de pó gigante, que atraía meus instintos, meus desejos, meus sentidos, devorando o pouco do meu bom senso como um animal selvagem.
Voltei porque eu queria experimentar você meu menino baiano, adolescente, de cabelos rasteiros, olhar tímido e ar cheirando à intelectualidade. Voltei porque eu queria você. Pouco me interessavam as tais histórias em quadrinhos, não foram mais que pretextos de quem desejava se instalar em um cantinho qualquer do seu coração aparentemente pouco explorado.
E você abriu as janelas da sua vida, sem temer nada e me puxou para perto, não se importando com o fato de eu ser uma completa estranha, uma pessoa que você conheceu numa noite, por acaso, e mesmo assim me mostrou um pouco de você e da sua vida trazida amassada dentro de uma mala mal-conservada, empilhada num canto de uma sala improvisada de alojamento, onde tantos outros meninos e meninas baianas disputam um lugar e que também esparramavam seus pertences numa desordem que parecia não ter fim, procurando um pouco conforto naquele lugar.
Conheci seu "planetinha" perfeitamente bem cuidado, assim como o Pequeno Príncipe fazia com o dele. E eu era a rosa, a sua rosa. A rosa que você regava todas as manhãs, a rosa bem tratada que murmurava reclamações nos seus ouvidos, e mesmo assim era sempre bem acolhida. Mas você não fugia na calda de um cometa para conhecer "novos mundos" e me deixava esperando o dia inteiro o seu regresso, como fazia o príncipe daquela história. Você me embalava dias e noites com o melhor que havia dentro de você, com seu jeito, jeito de quem não queria me fazer mal. E me alegrava com suas farras e leituras. Com seus discos de rock que não condiziam com seu aspecto de menino bem comportado.
Esses mesmo CDs tocados religiosamente todas as noites, no silêncio do lago negro enquanto o outro lado do mundo fervilhava entre gritos, risos e músicas variadas, tantas que não conseguíamos decifrar, mas nós não queríamos estar naquele universo, nos contentávamos com o silêncio do lado negro e com a lua absurda a impor-se sobre nós dois. Eu me alegrava com sua voz macia cantando suavemente no meu ouvido enquanto você roçava meus cabelos, procurando aspirar o perfume que saía deles, e me dizendo que levaria meu cheiro para casa.
Eu também me permiti a insegurança do desconhecido. Também abri as portas da minha vida para você. Mostrei os lugares onde meu escondo, os meus refúgios prediletos, e também aqueles onde eu me mostro. Tentei, com os meus parcos conhecimentos turísticos, mostrar a cidade que agora me integra, e você generosamente ciente do meu esforço sobre-humano prestava atenção em tudo, em cada detalhe, em cada frase, em cada lugar, não permitindo que eu visse que não era na cidade que você prestava atenção.
Em nenhum momento deixou escapar qualquer sinal de cansaço, de distração, de desânimo com aquelas coisas bobas que eu falava. Mostrei minha cidade do alto, seus "Sobrado e Mucambos", seus filhos da seca, sua gente religiosa, o seu céu azul tão límpido, seus bares, praias, justo eu que não gosto delas, mas acho que meu esforço valeu a pena, passei no teste e me registrei na sua memória prodigiosa, com uma fotografia que pode até amarelar com o tempo, mas não se apaga.
Meu soteropolitano se foi como um sonho bom, como todas as coisas boas da vida se vão. Ficou apenas o silêncio do lago negro e as lembranças daqueles dias furtivos, a intensidade de uma semana vivida como se fosse a última de nossas vidas. Ficaram os momentos de cumplicidades, de carinhos mútuos trocados em cada canto, as palavras delicadas, as frases engraçadas, as músicas...
Ele também saiu com a bagagem cheia de pedacinhos meus, do melhor que eu pude ser, daquilo que pude oferecer nesses seis dias onde a simplicidade de um sentimento tão forte e puro foi o ponto máximo do nosso encontro. Quem sabe um dia nos reencontraremos e quem sabe daremos continuidade a esse filme que eu não canso de assistir na minha memória.

Um cantinho, um violão e algumas palavras ásperas

Ambos deitado na cama iniciam um diálogo que talvez teria sido melhor se não tivesse existido. Pelo menos é isso que ela pensa. Ao fundo uma música qualquer tocando sem que nenhum dos dois prestasse qualquer atenção a ela:

Ele: A vida é mesmo uma puta e chata correria. Você corre, corre e na maioria das vezes não chega a lugar algum.
Ela: Mas poderia ser pior
Ele: Como?
Ela: Pior é quando a gente corre para chegar a algum lugar, e quando chega percebe que não era ali que queríamos estar.
Ele: É mesmo! (rs) É difícil quando a gente não consegue se encontrar. E você? Você já se encontrou?
Ela: Não, eu continuo correndo...
Silêncio...
Ele: Se eu perguntar uma coisa pra você, promete responder com sinceridade?
Ela: Claro
Ele: Você já se apaixonou?
Ela: Sempre
Ele: Você já amou?
Ela: Nunca
Ele: Você nunca amou ninguém?
Ela: É difícil definir o amor, principalmente falar sobre ele. Mas considero o amor uma coisa muito profunda e que poucas pessoas realmente conseguem encontrar. É quando numa relação um está “dentro” do outro. Não existe espaço para “eu”, só existe lugar para “nós”. Com a paixão é diferente, ela ainda nos permite um pouco de egoísmo.
Ele olha para ela... outra dose de silêncio
Ele: Você me ama?
Ela: Não!
Dessa vez um longo silêncio corta o ar. Não um silêncio de cumplicidade, mas algo constrangedor que indicar que tem coisa sobrando entre eles. Um silêncio de quem não sabe o que dizer enquanto o outro espera respostas que não virão.
Ele: Eu queria que você me amasse
Ela: Eu também queria amar você
Ele: E o que te impede
Ela: Sou muito egoísta para isso. E você, você me ama?
Ele: Se não acredita no amor por quê está me perguntando isso agora?
Ela: Sei lá, curiosidade talvez...
Ele: Não me pergunte isso agora
Ela: Por que?
Ele: Porque estou com meu orgulho ferido demais para te responder alguma coisa sincera. Eu poderia te dizer coisas que cavariam um abismo entre nós dois
Ela: Então é melhor mesmo ficarmos calados
Ele: Não! É melhor você ir embora
Ela: Você quer que eu volte outro dia?
Ele: Quero, mas agora quero que você vá embora
Ela: Então ta! Tchau
Ele: Tchau

Casa nova...vida nova

Olá...que bom que vocês vieram. Entrem, entrem, podem entrar!
A casa é nova e tá tudo ainda muito bagunçado. Falta organizar uma porção de coisas, por isso não reparem.
Falta pintar as paredes, varrer, tirar a poeira. Ainda não tenho mobília, só algumas poucas cadeiras velhas, porém muito úteis. Dos meus poucos pertences tenho uma garrafa com água para molhar a garganta, um pouco de pó de café para aquecer os dias frios e uma porta aberta por onde deixo minha vida passar.
Por falar nisso, vocês aceitam um copo com água, um pouco de café?
Não façam cerimônias! Puxem uma cadeira dessas aí e podem sentar. Tirem os chinelos, sapatos, sandálias e fiquem à vontade.
Aqui uma nova história vai começar. Como eu já disse, entrem e sintam-se em casa.