sexta-feira, setembro 02, 2005

O Soteropolitano

- Você gosta de quadrinhos no estilo Hai-Kai?
- Não conheço nenhum
- Se você quiser depois eu te mostro alguns
- Eu quero

Então você pediu que eu voltasse e eu voltei, voltei durante seis dias, ininterruptamente. Voltei para aquela história que não duraria mais que esses seis rápidos e deliciosos dias, mas que mesmo assim me sugava para junto dela como um aspirador de pó gigante, que atraía meus instintos, meus desejos, meus sentidos, devorando o pouco do meu bom senso como um animal selvagem.
Voltei porque eu queria experimentar você meu menino baiano, adolescente, de cabelos rasteiros, olhar tímido e ar cheirando à intelectualidade. Voltei porque eu queria você. Pouco me interessavam as tais histórias em quadrinhos, não foram mais que pretextos de quem desejava se instalar em um cantinho qualquer do seu coração aparentemente pouco explorado.
E você abriu as janelas da sua vida, sem temer nada e me puxou para perto, não se importando com o fato de eu ser uma completa estranha, uma pessoa que você conheceu numa noite, por acaso, e mesmo assim me mostrou um pouco de você e da sua vida trazida amassada dentro de uma mala mal-conservada, empilhada num canto de uma sala improvisada de alojamento, onde tantos outros meninos e meninas baianas disputam um lugar e que também esparramavam seus pertences numa desordem que parecia não ter fim, procurando um pouco conforto naquele lugar.
Conheci seu "planetinha" perfeitamente bem cuidado, assim como o Pequeno Príncipe fazia com o dele. E eu era a rosa, a sua rosa. A rosa que você regava todas as manhãs, a rosa bem tratada que murmurava reclamações nos seus ouvidos, e mesmo assim era sempre bem acolhida. Mas você não fugia na calda de um cometa para conhecer "novos mundos" e me deixava esperando o dia inteiro o seu regresso, como fazia o príncipe daquela história. Você me embalava dias e noites com o melhor que havia dentro de você, com seu jeito, jeito de quem não queria me fazer mal. E me alegrava com suas farras e leituras. Com seus discos de rock que não condiziam com seu aspecto de menino bem comportado.
Esses mesmo CDs tocados religiosamente todas as noites, no silêncio do lago negro enquanto o outro lado do mundo fervilhava entre gritos, risos e músicas variadas, tantas que não conseguíamos decifrar, mas nós não queríamos estar naquele universo, nos contentávamos com o silêncio do lado negro e com a lua absurda a impor-se sobre nós dois. Eu me alegrava com sua voz macia cantando suavemente no meu ouvido enquanto você roçava meus cabelos, procurando aspirar o perfume que saía deles, e me dizendo que levaria meu cheiro para casa.
Eu também me permiti a insegurança do desconhecido. Também abri as portas da minha vida para você. Mostrei os lugares onde meu escondo, os meus refúgios prediletos, e também aqueles onde eu me mostro. Tentei, com os meus parcos conhecimentos turísticos, mostrar a cidade que agora me integra, e você generosamente ciente do meu esforço sobre-humano prestava atenção em tudo, em cada detalhe, em cada frase, em cada lugar, não permitindo que eu visse que não era na cidade que você prestava atenção.
Em nenhum momento deixou escapar qualquer sinal de cansaço, de distração, de desânimo com aquelas coisas bobas que eu falava. Mostrei minha cidade do alto, seus "Sobrado e Mucambos", seus filhos da seca, sua gente religiosa, o seu céu azul tão límpido, seus bares, praias, justo eu que não gosto delas, mas acho que meu esforço valeu a pena, passei no teste e me registrei na sua memória prodigiosa, com uma fotografia que pode até amarelar com o tempo, mas não se apaga.
Meu soteropolitano se foi como um sonho bom, como todas as coisas boas da vida se vão. Ficou apenas o silêncio do lago negro e as lembranças daqueles dias furtivos, a intensidade de uma semana vivida como se fosse a última de nossas vidas. Ficaram os momentos de cumplicidades, de carinhos mútuos trocados em cada canto, as palavras delicadas, as frases engraçadas, as músicas...
Ele também saiu com a bagagem cheia de pedacinhos meus, do melhor que eu pude ser, daquilo que pude oferecer nesses seis dias onde a simplicidade de um sentimento tão forte e puro foi o ponto máximo do nosso encontro. Quem sabe um dia nos reencontraremos e quem sabe daremos continuidade a esse filme que eu não canso de assistir na minha memória.